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O FALA SÓ



O FALA SÓ

José Saramago


Hoje apesar do céu descoberto e do sol quente, não me sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obrigação nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas vindas quando sabe quando ninguém está para chegar. Mais vale aceitar (ou assumir, como é inteligente dizer-se agora) as boas e as más horas do espírito, porque atrás de umas vêm outras e nada  está seguro, etc., etc. Desta fatalidade poderia até tirar matéria para a crônica, se mesmo agora me não estivesse passado na lembrança um homem mal enroupado que eu conheci tonto de seu juízo, o qual homem levava triste dia a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia. Chamavam-lhe evidentemente de o Tonho Mauco uma espécie de bobo fácil dos adultos e de besta sofredora das crianças. Estas coisas são assim e no fundo não é por mal, se o Tonho morresse toda a gente tinha um grande desgosto, pois claro.

Das malícias do tonto não falo: eram muitas e nem todas para por por escrito. Mas honestíssimas donas de sua casa irrompiam aos gritos e empurravam Tonho para fora dos quintais onde ele se introduzia silencioso e ágil com um gineto. Adiante. O que me impressionava então e hoje recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante todo o santo dia, ora em altas vozes contra as portas e os prudentes habitantes que atrás se escondiam, ora em estranhos murmúrios com o rosto apoiado numa árvore, ora quase suspirando enquanto a água das bicas lhe iam correndo para a concha das mãos. Além dos seus outros nomes,apelidos e alcunhas o Tonho era o Fala-só.

Passaram prodigamente os anos, eu cresci, o Tonho envelheceu e morreu, e eu não morri, mas envelheci. Estas coisas também são assim e quando eu morrer as pessoas também vão ter muita pena. A ver.

Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas davam o nome de fala-só porque se achava que a poesia era uma forma de loucura nem sempre mansa, e porque alguns abusavam do privilégio de falar alto à lua ou de se lançarem a solilóquios mesmo quando em companhia. Bem sei que tudo isso vinha de uma noção incuravelmente romântica do que seja ser poeta e poesia. Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e, quando não os têm, inventam-nos.

Num mundo assim organizado todos tinham o seu lugar: loucos, poetas e sãos de espírito e todos estavam cientes dos seus direitos e obrigações.Ninguém se misturava. Mas decerto não era assim, porque havia sãos de espírito que passavam a loucos e a poetas, e começavam a falar sozinhos perdidos para a sociedade da gente normal. Um delgado fio é a fronteira e parte-se e gasta-se e é logo outro mundo.

Quero dizer na minha que estas crônicas são também dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato porque é uma voz cega lançada para um espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole, que nos rodeia e faz de cada um de nós  uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai interromper aqui mesmo a leitura, baixa o livro, levanta os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da sua alegria, di-las em voz alta, a ver se o mundo o ouve e se, pela magia do esconjuro involuntário, começa a enfim compreendê-lo, a si, leitor, a quem ninguém compreende e a quem ninguém ajuda.

De modo que fala-sós somo todos nós: os loucos, que começaram os poetas por gesto e imitação, e os outros, todos os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma palavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.

Fonte:  Livro A Bagagem do Viajante (crônicas) Edt Caminho,  Lisboa 2000.

Escolhi esta crônica pensando neste homem do comentado acontecimento na escola de Realengo. Não cabe aqui julgar suas atitudes, mas talvez refletir o quanto ele pode ter tentado falar e não ter sido ouvido... Há uma complexidade nestes fatos que ao invés de nos causar a natural repulsa pelo ocorrido, ouso olhar além e pensar em nós. 

Como para uns certos acontecimentos podem ser insignificantes e facilmente superados e para outros pode adquirir uma carga de sofrimento insuportável? É tênue. A mente humana é um terreno ainda inabitado em muitos aspectos; há o transtorno descrito e tratado pela ciência e há as experiências que nos afetam de modos diversos.
Regina Bomfim

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